terça-feira, 17 de novembro de 2015

Sangue em Paris


Bataclan foi um ataque ao prazer, foi um ataque a tudo que amamos: a alegria, o sexo, a música, a liberdade, a beleza

A maior descoberta dos assassinos do Estado Islâmico foi a mídia. Foram as redes sociais. A Al-Qaeda dependia da decisão do líder Osama. Hoje não há mais um chefe total, mas milhares de jihadistas em rede. Osama era analógico, o EI é digital. Outra grande descoberta dos ratos de Alá foi o “indivíduo ocidental.” Não há mais um atentado puramente político ou religioso, mas a busca do grande horror que só a morte individual desperta. “Já pensou se eu estivesse lá?”

Como dizia o Stálin: “A morte de milhões é uma estatística; a morte de um só é uma tragédia”.

Eles descobriram o uso da tragédia ao vivo, o furo em nossa compaixão, quando começaram a degolar pessoas diante das câmeras. A descoberta também da mise-en-scène: vídeos de alta resolução com os carrascos vestidos com um “terror fashion”, preto e amarelo, botas, capuzes, impecavelmente vestidos, chiquérrimos diante dos pobres diabos ajoelhados. Eles vêm marchando diante de uma bela praia, lindo sol no mar, e vapt! Degolam.

E isso impressiona os jovens imbecis que enchem o mundo.

Mais de dois mil ratos malucos foram lutar no EI; 500 já voltaram... Que farão eles? Parece que mataram o filho da p... inglês Jihad John, mas outros virão.

Eles também trazem a morte a lugares do prazer. Onde houver alegria traremos a morte — pensam — como na discoteca de Bali (lembram?) ou sexta-feira 13 no Bataclan de Paris. Escolheram Paris, o orgulho da civilização e da democracia. É lá que atacam.

Bataclan foi um ataque ao prazer, foi um ataque a tudo que amamos: a alegria, o sexo, a música, a liberdade, a beleza.

Outra coisa que nos fascina/apavora nesses ratos sujos é que eles querem atingir a plenitude do Mal, por si mesmo. Eles querem superar o demônio, desmoralizar o demônio.

É preciso destruir a beleza dos monumentos, queimar vivos prisioneiros, cabeças cortadas, eles querem provocar nosso horror e cuspir na imagem de Bem que ainda professamos. Eles querem o mal absoluto. E o mal absoluto não pode ter motivo.

Há alguns anos eu vi um homem sendo decapitado. Chegou um vídeo completo na TV e vi. Um bando de demônios de preto, gritando “Só Deus é grande!” agarram o pobre americano e lhe cortam o pescoço como o de um porco. Ele grita enquanto a cabeça lhe é arrancada, com o sangue que lhes suja as mãos, enquanto eles gargalham de felicidade, porque se sentem mais perto do céu: a cada cão infiel morto à faca eles sobem de ranking para a salvação.

Na religião islâmica, a morte é um prêmio. Quando havia degola na Argélia, eles chegavam ao detalhe de decapitar os inimigos com uma faca rombuda, porque quanto mais o cara gritava, mais se enobrecia o degolador perante Alá. O terrorista também quer ascensão social: um fugaz poder com bombas no corpo, sucesso post-mortem e subida aos céus, para comer as mil virgens, as huris, dançando de odaliscas, enquanto as desgraçadas sem clitóris vestem burca. A guerra de nações está acabando. Agora é a guerra da teocracia contra a tecnologia. Foram atingidos: o ateísmo, o iluminismo, a arquitetura, a paz burguesa, o turismo, a sensação de invulnerabilidade, o consumo.

A partir daí, todo mundo virou cientista político. Surgiram multidões de analistas de bom senso, tentando fazer a tragédia absurda caber numa narrativa coerente. Mas o terror não cabe na razão. De uma forma repugnante, a verdade do mundo apareceu. A América achava que chegaria a um futuro de paz e progresso.

Tudo o que fazemos tem o alvo da finalidade, do progresso. Os islâmicos já estão no futuro. Seu futuro é hoje. Não há passado. Nunca estiveram tão presentes como agora.

O Islã não quer progresso. Quer o imóvel, a verdade incontestável. O Islã transcendeu o político há muito tempo. Suas multidões jazem na miséria, conformadas, perfazendo um ritual obsessivo cotidiano do Corão que as libertou da dúvida e da consciência de si.

Nós temos a ilusão da liberdade. Eles nem sabem que porra é essa. Graças a Alá — pois Islã significa “submissão”. O “projeto” agora é procurar bombinhas em aviões, localizar bueiros com bombas e cartas venenosas. O Islã está nos expondo ao ridículo.

Acabaram também com o conceito de “vitória”. Não há mais vitória contra inimigos invisíveis. O homem-bomba não existe — ele se volatiliza em segundos. Sua força está em “não existir”. A grande arma secreta do Islã é o suicídio. Não o suicídio melancólico dos ocidentais, mas o suicídio triunfal, feliz, ativo, o suicídio como esperança.

A chegada de Deus foi a maior novidade do século XXI. Esperávamos um grande triunfo, o futuro no presente. Só que Deus veio armado, Deus enlouqueceu com seu exército de fanáticos se matando e querendo nos destruir em nome de uma superstição, um ser que não existe. Quem diria que o novo século, tecnocientífico, sucumbiria a essas sinistras macumbas?

Eles trouxeram a peste para o Ocidente. Eles nos odeiam, eles têm inveja de nós, porque vivem no lixo do deserto, nós somos civilizados, e eles, uma barbárie da Idade Média. E vamos parar com o papo meio “esquerdofrênico” de que estamos pagando pelo mal que lhes fizemos no passado. Nada disso. Não são mais “consequência” de nada, eles são a vanguarda de uma nova forma de morte, agora que tiveram a ideia de usar as máquinas do Ocidente, aviões e mísseis contra os infiéis. Pode? A morte não estará mais num leito burguês, com extrema-unção e a família chorando. A morte agora será um cachorro pelas ruas, atacando de repente. Que fazer contra esses ratos que infestam o Oriente Médio? Como atacar esta nova forma de crueldade?

Mas, como resolver questiúnculas políticas lidando com gente como o Putin, por exemplo? Deveria haver uma coalizão séria entre os países ocidentais para ataques maciços conta os canalhas... Em suma, o que deveria ter sido feito logo no início, quando ainda dava tempo para derrubar o Assad.

Mas, agora, talvez só reste aos países ameaçados a paranoia.

Eles ganharam todas até agora, porque, como disse o mulá Mohammed Omar, com desdém: “Nós amamos a morte. Você sempre gostaram de viver!”.

Arnaldo Jabor, O Globo, 16/11/2015

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