segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Tragédia: Casamento do Fortuito com o Inexorável.


"O país parou para acompanhar detalhes de uma das maiores tragédias de sua história. Duzentos e trinta e um moços e moças saíram de casa para se divertir na noite de sábado e jamais voltarão. Morreram queimados ou asfixiados — a grande maioria — na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Ficamos, especialmente os pais de adolescentes e jovens, paralisados de medo, de apreensão, de terror. Qualquer morte nos diminui. A de um ente querido nos destroça. A de um filho, então, subverte aquele que é o nosso mais duro aprendizado: morrer um pouco por dia para que sobreviva a nossa descendência. Em “Cântico do Calvário”, escrito justamente em memória de um filho morto, Fagundes Varela pôs nos justos termos:

“Eras na vida a pomba predileta
Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. — Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.”

Penso na dor dessas mães e desses pais e rezo para que encontrem algum conforto. Lembro-me de ter me irritado certa feita com a minha mãe por causa de seu excesso de preocupação, ainda que estivéssemos a centenas de quilômetros de distância: “Pô, eu sei o que faço; já tenho mais de trinta anos”. E ouvi do outro lado: “E continua meu filho; filho não tem idade para mãe e para pai”. Hoje sou eu que ouço: “Pai, eu já tenho 18, já tenho 16…”. Filhos não têm idade. As nossas crianças têm de voltar para que possamos fechar a porta, deixando do lado de fora as tormentas.

Mas a nossa dor também tem de saber exercitar a devida ira. Com a conivência de muitos, a Kiss não era uma boate, mas uma armadilha. Parece evidente que muitos milhares se arriscaram antes a morrer nas suas dependências. Faltava apenas o casamento do fortuito com o inexorável. As imprudências meticulosa e metodicamente praticadas careciam do elemento incidental, da estupidez que serve de estopim, do gesto tolo, irrelevante, que provoca a reação em cadeia e resulta na tragédia.

Na madrugada de sábado para domingo, ele veio na forma de um sinalizador, uma espécie de fogos de artifício, usado pela banda. Uma fagulha atingiu o teto de papelão e material de proteção acústica, altamente inflamáveis. Em segundos, o fogo se espalhou pelo teto. Estima-se que 90% das vítimas fatais tenham morrido asfixiadas pela fumaça, não queimadas. Talvez duas portas de emergência, destravadas, tivessem bastado para evitar a tragédia.

O Plano de Prevenção de Combate a Incêndio tinha vencido em agosto do ano passado e não havia sido renovado, informa o comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, coronel Guido Pedroso de Melo. É, sim, uma informação relevante, que parece indicar que a casa não primava exatamente pelo respeito às regras. Mas essa informação pode contribuir para omitir outra, que me parece ainda mais importante: quer dizer que, até agosto de 2012, o Corpo de Bombeiros julgava que tudo ia bem num imóvel que abriga duas mil pessoas e tem uma única porta. Ela não só servia à entrada e à saída dos frequentadores como era obstruída por uma espécie de biombo, que impedia os seguranças de ver o que se passava lá dentro, razão por que, por alguns poucos minutos, eles tentaram impedir a fuga dos jovens, supondo que queriam sair sem pagar a conta.

O incêndio causou um curto-circuito e deixou a moçada no escuro, em meio à fumaça. Não havia luzes de emergência, acionadas automaticamente quando há o corte do fornecimento de energia elétrica. Um extintor também não teria funcionado. A boate Kiss não poderia, naquelas condições, estar funcionando. E não era um empreendimento pequeno, que tivesse existência clandestina. Talvez fosse a maior casa do gênero em Santa Maria, uma cidade de porte médio, com 230 mil habitantes, mas com vida noturna agitada em razão da universidade federal, que atrai jovens do Brasil inteiro. A festa de sábado tinha sido organizada por alunos do primeiro ano dos cursos de Tecnologia de Alimentos, Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia, Tecnologia em Agronegócio e Pedagogia.

Estupidez
Não, senhores! Essa não é uma tragédia fabricada pelo acaso. Ela é obra de uma cadeia de descasos. Uma casa dessas dimensões tem de ter, por exemplo, uma brigada civil de combate a incêndios. A ela caberia dizer à tal banda “Gurizada Fandangueira” que o ambiente era impróprio para o uso de fogos de artifício.
Que se apurem as responsabilidades. Não sou polícia técnica nem perito. Mas há elementos de sobra para concluir que a “fatalidade” que resultou na morte de 231 jovens foi construída. Eles foram mortos pela estupidez, não pelo destino."
Texto de Reinaldo Azevedo.

Esta tragédia que atingiu centenas de familiares, amigos e conhecidos das vítimas se une àquelas que já são mencionadas, rotineiramente, na mídia: as tragédias diárias do trânsito, da violência e da saúde. 

Em 2010, último ano com estatística completada, 40.610 pessoas morreram em acidentes de trânsito. São 111 brasileiros mortos, por dia. Todos os dias.

Ainda em 2010, 49.932 brasileiros morreram assassinados. É o maior número absoluto, no mundo. Foram 136 cidadãos e cidadãs do Brasil mortos violentamente no país, por dia. Todos os dias. 

É uma taxa maior do que as mortes ocorridas, por exemplo, nas guerras da Chechênia, Iraque ou Afganistão.

Fala-se muito da violência no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas os piores índices de homicídios por 100.000 habitantes vem do norte e nordeste. O maior índice de homicídios é o de Alagoas, com 66,8 mortes por 100.000 habitantes. Em seguida, vêm o Espírito Santo (50,1), Pará (45, 9), Pernambuco (38,8) e Amapá (38,7).

Os estados com o menores índices são Santa Catarina (12,9), Piauí (13,7), São Paulo (13,9), Minas Gerais (18,1) e Rio Grande do Sul (19,3).

Não tenho os dados relativos aos índices de mortalidade geral no Brasil, mas segundo um estudo da Economist Intelligence Unit, da Grã-Bretanha, sobre a qualidade da morte divulgado em 2010, o Brasil ficou em antepenúltimo lugar entre os quarenta países pesquisados, devido a deficiências no tratamento paliativo, à disponibilidade de medicamentos e às políticas públicas de saúde.

São números que nos fazem pensar, com muita tristeza, sobre o estado lastimável em que se encontra o país que gastará R$ 27,4 bilhões para sediar a Copa do Mundo de 2014 . . .

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